Essa é uma crônica de Rubem Braga - na minha opinião, o melhor escritor brasileiro. E nessa crônica que parece não ser nada, tem tudo o que eu sinto:
"O Compadre Pobre
O coronel, que então morava já na cidade, tinha um compadre sitiante que ele estimava muito. Quando um filho do Compadre Zeferino ficava doente, ia para a casa do coronel, ficava morando ali até ficar bom, o coronoel é que arranjava médico, remédio, tudo.
Quase todos os meses o compadre pobre mandava um caixote de ovos para o coronel. Seu sítio era retirada umas duas léguas de uma estaçãozinha de Leopoldina, e compadre Zeferino despachava o caixote de ovos de lá, frete a pagar. Sempre escrevia no caixote: CUIDADO É OVOS – e cada ovo era enrolado em sua palha de milho com todo o carinho para não quebrar na viagem. Mas, que o quê: a maior parte quebrava com os solavancos do trem.
Os meninos filhos do coronel morriam de rir abrindo o caixote de presente do compadre Zeferino; a mulher dele abanava a cabeça como quem diz: qual... Os meninos, com as mãos lambuzadas de clara e gema, iam separando os ovos bons. O coronel, na cadeira de balanço, ficava sério; mas, reparando bem, a gente via que ele às vezes sorria das risadas dos meninos e das bobagens que eles diziam: por exemplo, um gritava para o outro – “cuidado, é ovos”!
Quando os meninos acabavam o serviço, o coronel perguntava:
- Quantos salvaram?Os meninos diziam. Então ele se voltava para a mulher: “Mulher, a quanto está a dúzia de ovos aqui no Cachoeiro?” A mulher dizia. Então ele fazia um cálculo do frete que pagara, mais do carreto da estação até a casa e coçava a cabeça com um ar engraçado:
- Até que os ovos do compadre Zeferino não estão me saindo muito caros desta vez,
Um dia perguntei ao coronel se não era melhor avisar ao compadre Zeferino para não mandar mais ovos; afinal, para ele, coitado, era um sacrifício se desfazer daqueles ovos, levar o caixote até a estação para despachar; e para nós ficava mais em conta comprar os ovos na cidade.
O coronel me olhou nos olhos e falou sério:
- Não diga isso. O compadre Zeferino ia ficar muito sem graça. Ele é muito pobre. Com pobre a gente tem de ser muito delicado, meu filho." Novembro, 1952.
É o que eu faço, o tempo todo. Pego meus sentimentos e tudo aquilo que tenho de melhor - que, na verdade, são coisas simples e banais como as dúzias de ovos que mandava o compadre Zeferino. Embalo cuidadosamente na palha do meu carinho, preparo cuidadosamente um a um e, entre solavancos da vida, entrego para as pessoas de que gosto especialmente.
E elas jogam os sentimentos de um lado para o outro, e riem deles. E acham melhor comprar esses sentimentos na cidade, pois são melhores e mais baratos - só que eu continuo mandando os caixotes um depois do outro, por mais que me custem, porque acredito que estou fazendo algo de bom, quando na verdade estou apenas sendo bobo.
É por isso que me envolvi tanto com aquela moça do escritório - porque, pela primeira vez em muito tempo, tenho a impresão de que alguém se deu ao trabalho de ver o que eu estava fazendo. Mas ela está sendo apenas delicada.
Mas agora, espero ter aprendido. Não tenho como deixar de produzir os ovos do meu amor, cada um deles prenhe do futuro que eu queria ter; não posso deixar de criar as sementes do meu carinho, do meu cuidado, do meu interesse; mas, agora, aprendi que é melhor jogar essas sementes sobre o asfalto e ver os pássaros da minha tristeza comê-las, porque ao menos assim não tenho a decepção de ver tudo o que criei com tanto amor ser lançado entre risos e resumido à frase "cuidado, é ovos".
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Genial!
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